Carla era pequena ainda, mas já tinha aprendido duas coisas: o certo e o errado.
Entendeu que o certo era aquilo que deveria fazer e que o errado era aquilo que deveria evitar. Não entendeu, no entanto, como descobrir se alguma coisa era certa ou errada – o que mandava toda a teoria por água abaixo.
A cada coisa que fazia, seus pais lhe diziam:
– Está certo, muito bem!
Ou:
– Está errado! Não faça isso!
E aprendeu mil coisas certas e mil coisas erradas com eles. Mas, todo dia, mil coisas novas apareciam. Carla precisava de uma fórmula, uma regra, claro! Assim, a cada nova situação, conseguiria decidir o que era o certo.
Pensou: o certo é aquilo pelo qual vem a recompensa e o errado era aquilo pelo qual vem a punição.
Logo, o dedo na tomada era imediatamente errado, como seus pais lhe diziam. Pareceu uma boa fórmula! Mas e o dedo no bolo?
Ah, o dedo no bolo! Quem nunca? Primeiro, a recompensa de mergulhar os dedos gordinhos no chantilly gelado e de saborear o doce cremoso na lambida. Delícia! Porém, inevitável, o furo será notado e o castigo virá infalível, seja uma semana sem seus brinquedos ou alguns dias sem ir ao parquinho. Houve recompensa e punição para o dedo no bolo, e Carla não soube mais dizer se era certo ou se era errado.
Pensou: o certo é aquilo pelo qual nunca vem uma punição.
Logo, o dedo no bolo era errado, como seus pais diziam. Pareceu uma boa fórmula!
Um dia, na escola, Carla viu um menino mais velho roubar o lanche de um mais novo. Bradou:
– Devolva o lanche dele!
O grandão se virou para ela e lhe deu um pontapé dolorido na canela. Saiu pulando de um pé só para seu cantinho, refletindo sobre ter sido punida por aquilo. Se a punição veio, portanto defender o garotinho foi errado.
Voltou para casa e perguntou para sua mãe o que achava disso, a qual respondeu:
– Minha filha, você fez errado! Não era problema seu, não se meta em confusão.
A regra concordou com o que sua mãe disse e deveria parecer boa. Carla não achou.
Percebeu que o tempo todo só tentou imitar o certo de seus pais. Nesse dia, pela primeira vez, Carla discordou deles e achou que defender o garoto foi certo, definitivamente certo!
E assim cresceu, convencida de que o certo não era mais nada daquilo que seus pais tinham lhe ensinado. Inaugurou seu próprio conceito de certo, o certo de Carla, só seu, indivisível de sua alma.
Não tinha mais um livro de regras, tinha um caderno em branco. Em princípio, encontrou angústia ao pensar que poderia escolher caminhos sombrios para si. Como nos primeiros passos de um detento ao ver a rua pela primeira vez depois de anos, ela teve receio, mas logo percebeu o valor de sua liberdade.
Dizia Protágoras que o ser humano é a medida de todas as coisas. O certo e o errado está dentro das nós. A dor do pontapé foi sentida por Carla, dentro de si. O pontapé foi errado? Sim, para Carla, que sentiu a dor – achou errado. Foi errado para quem a chutou? Talvez sim, seja esse sensível às dores alheias – achou errado, mas o fez assim mesmo.
Fosse Carla sozinha do universo, errado e certo seriam pouco úteis. Sem ninguém para sentir dor, chutar uma pedra não seria errado. Não teria ninguém para matar a fome com o bolo, então não seria errado furá-lo.
Por que precisava de certo e errado, então?
Pensou uma coisa bela: o certo e o errado só existem porque os outros sentem e eu me importo. O certo de Carla, portanto, era bom por princípio, não por imposição.
Carla teve uma vida longa, fez tudo que quis: comeu chocolates, viajou sem rumo, brigou com namorados, largou a faculdade, tocou violão, brincou com cachorros. Teve bons amigos, teve inimigos, amores e filhos, morreu sem realizar seus sonhos, mas realizou um monte de coisas que jamais sonhou.
Carla fez coisas que achou certas, mas achou certo fazer errado de vez em quando também.
E, no final, quem sou eu para dizer que ela estava errada?
O que achou?