Antes mesmo de eu nascer, já tinham escrito para mim diversas regras sobre como eu deveria viver.
Já tinha gente preparada para me punir se não cumprisse essas regras. Tinham lugares especializados onde passaria minha infância aprendendo, dentre outras coisas, a obedecer essas regras.
Funcionou: hoje, adulto, resumo-me a cumpri-las.
O que me tornaria obediente seria, em parte, saber que seria punido se não obedecesse. Mas, confesso, a perspectiva de punição nem passa pela minha cabeça, pois confio que minha obediência seja tão eficiente que eu naturalmente jamais escolha desobedecer. Confio que sou tão formidavelmente obediente a ponto de cumprir leis que em grande parte nem mesmo conheço.
Eu sou um homem branco de classe média que mora na metrópole. Do meu ponto de vista isoladamente, talvez seja desejável manter a ordem. A ordem me protegeu e me mimou. Me deu uma vida confortável e tranquila: trabalho com o que gosto, tenho lazer e como do melhor. Não teria absolutamente nenhum motivo para desafiar a ordem, seria apenas estúpido do ponto de vista pessoal.
Agora, todos sabemos que, na verdade, as coisas estão simplesmente uma merda. Que tá transbordando de gente trabalhando sem folga por trocados, comendo restos de lixo e bebendo água contaminada. Essa é a realidade, e nós a ignoramos diariamente para não morrer de desgosto e continuar vivendo na nossa bolha sem nos comover.
Que motivos essas pessoas que comem restos tem para querer manter a ordem? Que senso de obediência esse povo terá à leis que não os protegem de toda essa desgraça que vivem? Por que cargas d’água alguém obedeceria leis que te deixam na merda enquanto mandam aqueles que te exploram para ilhas paradisíacas tomar água de coco?
Falhamos em lhes dar motivos para obedecer e falhamos em doutrina-los a obedecer. Também falhamos em os amedrontá-los e coagi-los a obedecer. Malditos desobedientes, roubaram meu iPhone! Por que não vivem suas vidas de merda quietos?
Criamos jaulas para guardar gente desse tipo, que desobedece. Ou melhor, gente que desobedece e não tem bons advogados.
Aplaudimos aqueles que, mesmo em face à sua própria tragédia, conseguem obedecer: “Pedrinho estava fodido na vida, mas não desobedeceu as regras, continuou se fodendo e agora está um pouco menos fodido – deu a volta por cima! Isso, claro, depois de trabalhar duro por anos para sustentar playboys que dão festas com prostitutas na piscina de suas mansões”. Palmas para Pedrinho, vai passar no Fantástico, prodígio, exemplo, obediente.
Vai passar no Fantástico, também: no Maranhão os presos estão se rebelando e se matando. Estão arrancando as cabeças uns dos outros. O Brasil está em choque: como eles são bestiais e bárbaros, ainda bem que estão presos – ufa! Não importa se eles estão vivendo amontoados em condições que você denuncia no Facebook quando envolvem cães. Talvez importe um pouco, mas não a ponto de se fazer nada a respeito. Tampouco a ponto de traçar uma conexão entre o tratamento que recebem e seu comportamento.
Todo dia, Datena mostra um bandido que violentamente agrediu ou matou um pai de família da minha cidade. Todo santo dia, não pula um. Ele quer te convencer que bandido é de uma espécie diferente, de genes ruins, raça maldita, que a polícia está trabalhando para exterminar. Em quase duas horas de programa – quanta audiência dá isso, meu deus? – nenhuma mínima reflexão sobre a origem de toda essa violência. Nenhuma reflexão sobre como melhorar as coisas para que as pessoas não se tornem violentas, para que elas achem que lhes é de interesse obedecer a ordem.
Ninguém realmente se preocupa com o por que de tudo isso. Faz parte da doutrina, a mesma que dita as regras, evitar pensar no porquê e instaurar o medo. O resultado é que mesmo os mais privilegiados ainda pensam mais nos seus próprios problemas do que em qualquer outra coisa: ficam com medo de perderem o que tem, de terem dificuldades e de passarem por aquilo que a maioria está passando…
É uma reação animal, pois somos todos animais, exatamente iguais àqueles que enjaulamos.
O que achou?