Hoje, meu amigo, você perguntou:
– Como vai?
Respondi:
– Muito bem.
Não acredito que tenha entendido a sinceridade e a precisão de minha resposta – deve tê-la tomado como conversa casual.
Amigo, deixe-me explicar melhor…
É fato estrito e coisa certa que vou muito bem.
Minha vida é profundamente simples de viver. Tenho poucas coisas com que me preocupar, não tenho inseguranças: tenho minhas poupanças, previdência privada, plano de saúde e até odontológico. Não me preocupo de perder o emprego ou de pegar febrão ou de cair de boca e perder os dentes: nada disso vai ser mais do que uma dor de cabeça passageira.
No meu cotidiano não preciso ter medo das pessoas que estão andando ao meu lado: não sou interessante para o assaltante, ando mal vestido; não sofro violência policial, sou branco; não tenho medo de ser estuprado, sou homem.
Posso até postar fotos com minha namorada e todo mundo – todo mundo – acha lindo, porque sou heterossexual.
Meu amigo, é fato que nada ameaça meu ciclo vital: tenho certeza que vou comer, dormir e andar em segurança todos os dias. Sei que serei respeitado onde for e que terei várias das experiências que quero ter – vou viajar nas férias e comer naquele restaurante que você falou no final de semana.
E olhe que não sou rico por nenhum critério. Não tenho propriedades, não tenho fazenda, empresa, industria, não sou dono de imprensa, não sou dono de nada além da minha capacidade de trabalhar.
Tenho hoje, porém, absolutamente tudo que um humano de meu tempo pode querer.
Por que diabos eu me importaria em ter qualquer coisa mais: mais dinheiro, mais sucesso?
Eu sei, amigo, você me dirá: mas e a insegurança? E o futuro incerto das crises? E se, Deus me perdoe, uma tragédia acontecer e você não puder trabalhar? E quando você ficar velho?
Ora, que se foda tudo isso!
Poderia colocar meu corpo, minha alma, meus valores e minha existência histórica à disposição de ganhar mais e mais dinheiro e me proteger de tudo isso – só para acabar morto e podre debaixo da terra.
A minha vida está ótima e não precisa de melhora. Aqui está sobrando.
Mas a generosidade da realidade acaba ai, meu amigo.
Em volta de mim, 360 graus, está tudo uma merda, em chamas, aos gritos e ao ranger de dentes.
Nem nas mais criativa distopia da ficção conseguiriam imaginar um mundo tão estúpido, covarde e cheio de mágoas e sofrimento quanto o nosso.
Está instalada uma máquina global esmagadora de sonhos, aspirações e carne que maltrata, mutila, assassina, escraviza e hipnotiza bilhões pessoas e animais. Bilhões, com B.
Estamos destruindo as nossas próprias condições de existência e indo em rumo certo ao apocalipse climático.
Todos os dias genocídios são levados à cabo com robôs e bombas que pulverizam corpos inocentes sem sobrar uma gota de sangue para nos comover.
Nossa comida, fresca, é estragada para produzir porcarias venenosas que são perfumadas para parecerem tragáveis. Enquanto isso ainda, ainda, aindaaaaa tem gente morrendo de fome por toda parte.
Toda essa merda em nome de alguns poderem ficar ricos, que não serve pra nada além de juntar um monte de objetos brilhantes coloridos dentro de salões enormes que só você pode entrar.
Gê-zus. É inacreditável o quanto está ruim.
Mas, olhe amigo, se você perguntar para mim: como vai?
Responderei: estou ótimo.
Que coisa louca, né?
Vou muito bem, obrigado. Tão bem quanto pode estar alguém que vive em uma bolha de privilégios dentro do inferno.
Estou bem, mas a única coisa que passa pela minha cabeça da hora que eu acordo até a hora que eu durmo e durante meus sonhos é como eu vou fazer para destruir a minha bolha, a sua bolha, todas as bolhas e o mundo todo.
Amigo, se você me perguntar: como vai?
Responderei: estou bem.
Mas algo me diz que você vai parar de perguntar.
O que achou?