O vôo de Madalena

Madalena queria ser livre.

Pensou que se a vida é feita de escolhas, boas escolhas faria e boa vida viveria. Que se a vida é feita de esforços e recompensas, muito se esforçaria e os céus conquistaria.

Madalena queria ser como os pássaros. Esses podem voar por volumes ilimitados, pousar onde acham belo, sentir a brisa no rosto, comer das mais doces frutas.

Diferente dos pássaros, Madalena nasceu sem asas. Restrita à mediocridade de ter um nascido em berço comum, em bairro comum, em família comum. Gente comum não voa, rasteja.

Quais seriam as escolhas, então, para Madalena passar de rastejante a alada?

Lhe disseram, desde cedo, que o nobre esforço do estudo e do trabalho premiaria os melhores com asas para alçar tão sonhado vôo e deixar os rastejantes para trás.

A vida correta seria então aquela do suor pingando da testa, das provações e das privações, da poupança e da paciência, pois essa, e somente essa vida, poderia torná-la um dentre os melhores, os mais fortes – os que voam.

Rastejante ainda, precisava de um emprego, um casulo para iniciar sua metamorfose de larva a borboleta.

Em sua primeira entrevista de emprego, o patrão explicou:

– “O salário é de mil e trezentos. Entra as 8 e sai as 5, de Segunda a Sábado. Almoça no refeitório. Tem que vir de social, a não ser de Sexta. Você vai responder para o Mario Mendonça, nosso coordenador. Terá que bater metas que estabeleceremos no começo do semestre. Precisa se integrar com a cultura da empresa e absorver nossos valores.”

O patrão alado tinha escolhido seu salário, seu horário, o que ela iria vestir, o que ela iria comer, o que iria fazer, quem iria obedecer e até que valores iria ter no seu coração. Madalena, rastejante, não pode exigir nada, apenas aceitar ou recusar e ficar desempregada.

Decidiu recusar, ainda assim – era livre e não era obrigada a aceitar essas condições ridículas.

O patrão contratou então Joana, a próxima da fila, que estava com o aluguel vencendo e acabou topando.

É certo que Madalena também precisava do emprego, mas poderia buscar em outro lugar, tinha paciência.

E assim foi, rumo à segunda entrevista:

– “Salário de mil e duzentos e mais vale-refeição. Tem que vir de social, todos os dias…”

Nada feito. Na próxima:

– “Salário de mil e cem, com refeitório no local…”

E em muitas outras:

– “Tem que vir de social…”
– “Novecentos mais cesta básica…”
– “Vai ficar embaixo do Mauro…”

Parecia ser obrigada a aceitar um mal negócio voluntariamente – e achou isso uma idéia sem pé nem cabeça.

Depois de muita busca, viu o seguinte anúncio:

– “Salário de dois mil. Entra às 8 e sai às 5, de Segunda a Sexta. Não precisa vir de social. Em 2 anos poderá virar coordenadora.”

Nada mal! Madalena viu ali uma oportunidade, e não a largaria. Enfim colheria os louros do mérito de sua paciência, perseverança e esforço: trabalharia de jeans, ganharia dois mil e batalharia para virar coordenadora em meras 3.840 horas de trabalho! A glória!

Mas a empresa decidiu, infelizmente, contratar Marcos Lima, porque ele tinha mais experiência.

Humildade era a virtude que lhe faltava, disseram: rastejava de cabeça muito erguida para quem não tinha passado ainda pelos batismos de fogo da experiência profissional.

Abaixou a cabeça, colocou o salto-alto dolorido, o despertador para as 5, subiu no ônibus lotado e atravessou a cidade para trabalhar em um dos mal pagos e odiosos empregos que antes recusara. Almoçou a comida que o patrão ofereceu, fez o que patrão mandou, foi embora a hora que o patrão deixou.

E assim rastejou por 6 de cada 7 dias de sua vida durante anos.

E anos depois, mais experiente, Madalena se candidatou e finalmente conseguiu um emprego naquela empresa que a tinha rejeitado antes.

E agora, ganhando dois mil e pouco e folgando também aos Sábados, se sentiu recompensada. Seu patrão até a deixava usar tênis – quanta generosidade!

E em quatro anos, virou coordenadora. E em mais cinco anos, virou gerente.

Foi gerente do departamento por muitos anos e agora, aos quarenta, com dois filhos, não mais conseguia ter a dedicação que tinha para exceder as metas. Não podia perder o emprego tampouco, pois sabia da dificuldade de arrumar um emprego nessa idade.

Nunca se tornou diretora, muito menos patroa. Seu rastejo tinha atingido sua altura máxima. Para Madalena, isso era o máximo que ela jamais teria na vida – já era.

No seu último dia de trabalho antes de se aposentar, Madalena tomou coragem, entrou na sala do seu patrão e disse:

– Dediquei minha vida a batalhar pelo meu sonho de ser um pássaro, mas mesmo depois de quarenta anos aprendendo a voar, continuei rastejante. Onde foi que eu errei?

E seu patrão respondeu, sábio:

– Para ser um pássaro, não basta aprender a voar. É preciso aprender também a cagar na cabeça dos outros.


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