Leonidas, o pianista

Estava correndo para casa, quando um acorde me conquistou.

Fui procurando de mansinho, seguindo o som – de onde vinha aquela música? No canto do terminal rodoviário, sentado num piano avariado de uma cafeteria, lá estava ele.

Piano tocado por mãos idosas

Era um senhor bastante idoso, visivelmente compenetrado, mordendo os lábios e contorcendo os dedos para alcançar aquela oitava. Tocava o famoso tema do filme “O Mágico de Oz”, e eu podia quase ouvir a bela e esganiçada voz da então jovem Judy Garland saindo das cordas do piano.

Ao concluir a música, virou-se para mim e abriu um sorriso sincero. Eu era o único espectador – que privilégio! Impressionado, perguntei:

– Desde quando o senhor toca?

– Bom, – respondeu – desde os cinquenta anos! Tenho noventa, já toco há quarenta!

Percebi de imediato o quanto vinha sendo bobo, que tantas vezes reclamei frustrado que já estava velho demais para aprender piano. Aquele senhor tinha começado aos cinquenta e já tinha amado seu instrumento por um tempo que extrapola em treze anos todo meu tempo de vida.

– Qual seu nome?

– Leonidas, mas pode me chamar de Léo!

Voltou-se ao teclado e começou, com sua rouquidão evidente, a cantar Trem das Onze, o clássico de Adoniran Barbosa.

Ele não acertava todas as notas, algumas escapavam. Seriam erradas pela partitura, mas ele não tinha uma partitura. Ele era o senhor da sua música! Se Adoniran não quis dessa forma, azar dele! Não era dia de Adoniran, era dia de Leonidas.

E de fato aquela música tinha mais de Léo que de Adoniran. O saudoso e talentoso compositor deu apenas o papel para que Leonidas escrevesse sua história. Notas destoantes soavam enriquecedoras, tornavam a performance única.

Ao encerrar, virou para nós – que agora já éramos três em volta de seu piano – e nos disse:

– Deus me tirou a audição, eu não posso mais ouvir. Ele me tirou a visão, não consigo enxergar direito. Mas ele me deixou o dom do piano e é assim que eu posso trazer alegria e amor para a vida das pessoas.

Começou a tocar novamente, sorrindo. Tocar o piano, para Léo, é muito mais do que música. É assim que ele passa a nós a sabedoria que acumulou dentro de si durante quase um século de vida.

Através do piano ele abraça e acolhe, como me acolheu ontem.

Antes de ontem, se me perguntassem o que era arte, ficaria confuso para responder – pergunta complexa. Hoje, se quiser saber o que é arte, indico que visite o Terminal Rodoviário do Tietê nas noites de quinta-feira e procure por Léo.

Não será difícil de achar, basta seguir a melodia.


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