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Fácil de calçar

Não sou vaidoso: não me visto bem, não aparo a barba de manhã, não decoro meu quarto e nem desamasso meu carro.

Meu pai, por exemplo, sempre me diz que é para eu comprar camisetas novas e trocar meu tênis. Que vergonha, Diego, andar assim – ele diz. Numa dessas, me comprou dois pares idênticos de tênis que permanecem como meus únicos calçados até hoje. Eu gosto deles, pois são confortáveis e fáceis de calçar – coisas que valorizo num calçado!

Tudo depende do que você dá valor. Tem gente que dá valor a tênis bonitos, tem gente que gosta dos tênis duráveis e tem outros, como eu, que gostam dos confortáveis.

Depende também do que os outros dão valor.

Para quem gosta de tênis bonitos, aqueles que gostam de tênis duráveis são mãos-de-vaca e aqueles que gostam de tênis confortáveis são mesmo é desleixados!

Para quem gosta de tênis duráveis, os que gostam de tênis bonitos são fúteis e os que gostam de tênis confortáveis são uns frescos!

Agora, para quem gosta de tênis confortáveis, como eu, aqueles que gostam de tênis duráveis ou bonitos estão sempre com os pés doendo – o que é uma pena.

Alguns tentam ter tênis bonitos, roupas bonitas, corpos bonitos, carros bonitos, casas bonitas, amores bonitos…

Outros tentam ter tênis duráveis, roupas duráveis, corpos duráveis, carros duráveis, casas duráveis, amores duráveis…

Eu gosto de tênis confortáveis, eles me fazem bem.

Tenho dois deles: um branco e um azul.

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Leonidas, o pianista

Estava correndo para casa, quando um acorde me conquistou.

Fui procurando de mansinho, seguindo o som – de onde vinha aquela música? No canto do terminal rodoviário, sentado num piano avariado de uma cafeteria, lá estava ele.

Piano tocado por mãos idosas

Era um senhor bastante idoso, visivelmente compenetrado, mordendo os lábios e contorcendo os dedos para alcançar aquela oitava. Tocava o famoso tema do filme “O Mágico de Oz”, e eu podia quase ouvir a bela e esganiçada voz da então jovem Judy Garland saindo das cordas do piano.

Ao concluir a música, virou-se para mim e abriu um sorriso sincero. Eu era o único espectador – que privilégio! Impressionado, perguntei:

– Desde quando o senhor toca?

– Bom, – respondeu – desde os cinquenta anos! Tenho noventa, já toco há quarenta!

Percebi de imediato o quanto vinha sendo bobo, que tantas vezes reclamei frustrado que já estava velho demais para aprender piano. Aquele senhor tinha começado aos cinquenta e já tinha amado seu instrumento por um tempo que extrapola em treze anos todo meu tempo de vida.

– Qual seu nome?

– Leonidas, mas pode me chamar de Léo!

Voltou-se ao teclado e começou, com sua rouquidão evidente, a cantar Trem das Onze, o clássico de Adoniran Barbosa.

Ele não acertava todas as notas, algumas escapavam. Seriam erradas pela partitura, mas ele não tinha uma partitura. Ele era o senhor da sua música! Se Adoniran não quis dessa forma, azar dele! Não era dia de Adoniran, era dia de Leonidas.

E de fato aquela música tinha mais de Léo que de Adoniran. O saudoso e talentoso compositor deu apenas o papel para que Leonidas escrevesse sua história. Notas destoantes soavam enriquecedoras, tornavam a performance única.

Ao encerrar, virou para nós – que agora já éramos três em volta de seu piano – e nos disse:

– Deus me tirou a audição, eu não posso mais ouvir. Ele me tirou a visão, não consigo enxergar direito. Mas ele me deixou o dom do piano e é assim que eu posso trazer alegria e amor para a vida das pessoas.

Começou a tocar novamente, sorrindo. Tocar o piano, para Léo, é muito mais do que música. É assim que ele passa a nós a sabedoria que acumulou dentro de si durante quase um século de vida.

Através do piano ele abraça e acolhe, como me acolheu ontem.

Antes de ontem, se me perguntassem o que era arte, ficaria confuso para responder – pergunta complexa. Hoje, se quiser saber o que é arte, indico que visite o Terminal Rodoviário do Tietê nas noites de quinta-feira e procure por Léo.

Não será difícil de achar, basta seguir a melodia.

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O melhor de mim

Tem uma estante de livros de bolso, daquelas redondas que giram divertidamente, na loja de conveniência do posto de gasolina em frente ao meu trabalho. Fico lá, brincando de rodar e rodar, pensando na vida, enquanto tomo meu café da tarde.

Vi algo me sugou brevemente para fora das minhas divagações. Foi um livro vistoso, com uma montanha azul e um pequenino alpinista, com a frase “como dar o melhor de si mesmo”. Uma capa bonita – as vezes é o que chama atenção.

Não pude evitar a reflexão: se é o seu melhor, por que você daria aos outros? Foi a primeira coisa que me ocorreu, que geralmente ninguém dá suas melhores coisas, guarda pra si.

Que bobagem – pensei -, dar o melhor de si significa ser uma pessoa melhor!

Peguei, então, o livro em mãos para folhear e, quem sabe, absorver alguns pensamentos que pudessem me ajudar. Qual não foi minha surpresa ao notar que o livro tratava, na verdade, de como ser mais eficiente. Um livro para otimizar minha performance!

Levantei meus olhos por sobre o livro para pensar e notei latinhas de bebidas estimulantes na geladeira logo à frente. Meu celular então vibrou, mostrando que começaria uma reunião em 5 minutos.

Para não me atrasar, larguei o livro e fui direto ao caixa – não tenho tempo para pensar. No balcão, tinha uma revista masculina com “dicas para prolongar a ereção”, que me lembrou os clássicos spams de e-mail sobre aumentar o meu pênis. Uma outra matéria, essa de tecnologia, sugeria cronometrar meu dia em intervalos alternados de 28 minutos de trabalho e 5 minutos de descanso. Vinte e oito, não trinta.

Evitando as revistas, peguei um chocolate e me dirigi ao escritório. Ao morder, percebi que não era chocolate, mas sim aquelas barras de maltodextrina para dar energia – uma porcaria, odeio.

Cheguei a tempo, no escritório, para a reunião de feedback – é onde te dizem se você está trabalhando bem. Não estavam felizes: minha produtividade tinha caído!

– Diego, você está desmotivado? – perguntaram.

Demorei para responder, perplexo.

Por que, meu Deus, o mundo quer tanto aumentar a minha performance?

Me dizem que devo ser mais rápido e mais inteligente. Mais forte, viril e transar melhor que os outros. Ser mais bonito, mais desinibido e mais engraçado. Ser bom não basta, preciso ser o melhor.

Minha performance se tornou a régua pelo qual meu valor é medido. O sucesso – a mais nobre medalha – é concebida aos mais eficientes, azeitadas máquinas de produzir resultados. O fracasso – vergonhoso, pífio – destinado aos lentos e medianos.

Uma grande amiga, semana passada, confessou, com tristeza: sou um fracasso, não consigo emprego e vou reprovar na faculdade. Isso doía nela, e doeu em mim…

Mas agora ficou claro que não existe essa bobagem de fracasso nem sucesso. Sua vida não é uma engrenagem, utilitária, que deve servir a qualquer propósito. Trabalhar é preciso, estudar é precioso, mas a vida é muito mais do que isso.

Dar o melhor de si não é fazer as coisas com mais eficiência, mas sim tentar fazer as melhores coisas. É abraçar quem ama, ajudar quem precisa, combater injustiças, compreender erros. É ser uma pessoa que torna as outras melhores.

Se você quer ser o melhor de todos, você não quer que os outros possam ser melhores que você. Ser o melhor de todos não é dar o melhor de si, é guardar o melhor para você.

– Diego! Você está desmotivado? – insistiram.

Respondi:

– Estou dando o melhor de mim.

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João e Paulo

João nasceu. Na maternidade pública, do ventre de sua jovem mãe para as mãos do esforçado médico. Foi dia de festa e alegria para a família! João, orgulho do papai, amor da mamãe, coisa mais fofa das titias, foi levado pra casa, para seu berço de madeira no quarto com os dois irmãos.

No mesmo dia, em uma dessas coincidências que só Deus explica, nascia Paulinho. Do belo hospital, o melhor que puderam pagar, saia Paulo Ferreira, o filhão, campeão, que nasceu pra brilhar. Será médico ou advogado, terá estudo, os pais planejaram tudo. Chegou em casa, um quarto azul, um lindo berço, as tias apertando as bochechas – que fofo! Isso nunca muda.

Não sabiam os dois, mas estavam destinados um ao outro.

Crescia o Joãozinho em sua casa de reboco, tijolos aparentes, na encosta do morro. Brincava na rua de peão, de bolinha de gude e com a bola de capotão. O pai voltava tarde pra casa. Era trabalhador, honesto, servente de pedreiro, construía casas para os outros morarem. Herói do pequeno: quero ser pedreiro quando crescer! – dizia. Até que um dia, visitando a obra, o menino perguntou:

– Papai, porque nossa casa num é bonita como essa?

– Essa casa num é pra gente! Os moços que moram aqui são gente diferente, estudados e inteligentes, gente melhor que a gente. Num é casa pra gente simples como a gente vir morar. Estuda, meu filho, prum dia cê chegar lá! – disse o pai.

Joãozinho não achou justo: ninguém é melhor que o papai! E, de fato, ninguém era.

Paulo Ferreira, o Paulinho, era um bom aluno na escola em que estudava. Tinha quadra, piscina, natação aos sábados e aulinhas de inglês. Era educado, levava palmadas se aprontasse, comia verduras no almoço – espinafre pra ficar fortinho. Tinha um Super Nintendo e chamava os amiguinhos pra jogar Mario e comer pão pullman com requeijão. Como era gostoso! Bom tempo esse de ser criança! Certa vez, seu pai, que chegava as seis, trouxe um boneco para ele brincar.

– Obrigado, papai! Como você conseguiu esse bonequinho?

– Papai trouxe da loja de brinquedos e pagou com o dinheiro suado de trabalhar! – respondeu o pai.

Paulinho achou justo: ninguém é melhor que o papai! E, de fato, ninguém era.

A mãe do João,  filha da vó Neide, era empregada na casa da Dona Marlene. Lavava, passava, limpava, passeava os cãozinhos. Fazia comida, cuidava dos meninos, pegava as sete e saia as oito, do centro da cidade, pra tomar o trem. Uma noite, chegou em casa e deu beijo no Joãozinho, que perguntou:

– Mamãe, porque você cuida da casa dos outros, e num vem ninguém cuidar da nossa?

– Filho, meu anjo, com o dinheiro que eu ganho mal dá pra comprar arroz, fubá e leite. Dona Marlene é diferente, estudada e inteligente, gente melhor que a gente. Empregada num é coisa pra gente simples como a gente, num dá pra mamãe pagá. Estuda, meu filho, prum dia cê chegar lá! – respondeu a mãe.

Joãozinho não achou justo: ninguém é melhor que a mamãe! E, de fato, ninguém era.

Às cinco era hora do lanchinho, hora de subir do parquinho, hora do Paulinho parar de brincar. Bisnaguinha, toddynho, geléia e suco de maracujá. Mordidas após mordida, vendo desenho na TV a cabo antes da novela. Depois, foi fazer lição de matemática, aritmética básica do ensino fundamental.

– Mamãe, vem me ajudar? Quanto é dois mais dois? Não sei somar!

– Claro, filhote, um mais um são dois, dois mais dois são quatro, é fácil, vou te ensinar! – e sentou pra explicar.

Paulinho achou justo: ninguém é melhor que a mamãe! E, de fato, ninguém era.

João e Paulo, nascidos no mesmo dia, na mesma cidade, viviam em mundos completamente diferentes.

Joãozinho tinha só uma certeza na vida, a de que o mundo era injusto. Aprendeu desde cedo que moleque de pé no chão não pode ter o que os outros meninos tem.  Que o trabalho é duro, a vida é dura, as vacas magras, as águas turvas…

Sabia que estudar era a saída, mesmo quando na escola não tinha professor pra ensinar. Tentou ler em casa, era difícil se concentrar, não sabia nem por onde começar. Queria ter nascido menino gênio, igual um que viu na TV. Assim, ia conseguir mudar de vida, ter aquilo que queria e comprar uma casa bonita pro seu pai.

Paulinho tinha só uma certeza na vida, a de que o mundo era justo. Aprendeu desde cedo que para ter tudo o que sempre quis bastava esforço e determinação. Que o trabalho é nobre, a vida é bela, as mesas fartas, as águas límpidas…

Sabia que estudar era o caminho, e na sua escola ele aprendia tudo que precisava para passar no vestibular. Universidade pública é concorrida, mas se não passasse, ele sabia, podia ir pra particular. Queria ter nascido menino gênio, igual um que viu na TV. Assim, ia conseguir um doutorado, ser reconhecido, viajar pra França e seu pai ia se orgulhar.

O tempo foi passando, e João foi ficando amargo, foi se entristecendo e se sentia fraco… Na adolescência, aprendeu que alguns tomavam a força aquilo que queriam ter. Esses sim, eram fortes, espertos e cheios de vida. Não abaixavam a cabeça para o mundo, desafiavam a ordem, desobedeciam as leis. Leis que não protegeram João das injustiças que sofreu.

Seus pais, honestos e experientes, alertaram: não vá por esse caminho, meu filho! Não tome dos outros o que não é seu!

João não achou justo: é meu direito ter as coisas que os outros tem! E, de fato, era.

O tempo foi passando, e Paulo Ferreira se tornou um jovem simpático e gentil. Na adolescência, teve três namoradas: chorou pela perda da primeira e largou a segunda pela terceira. Fazia curso técnico a noite, tinha as tardes livres e tocava violão.

Seus pais, querendo seu melhor, recomendaram: porque não procura um estágio, para ter seu próprio dinheiro e comprar suas próprias coisas?

Paulo achou justo: é meu direito ter as coisas que os outros tem! E, de fato, era.

Estava decidido, para João, que iria dar um basta nisso tudo. Ninguém mais lhe diria o seu lugar. Não aceitaria mais que, por força do destino, estivesse condenado a viver na condição de servo. Ora essa, quem eles pensam que são? Quem disse que eu devo lhes servir? Que direito eles tem de morar na casa que meu pai construiu, de fazer minha mãe lavar suas roupas? Chega! Foi dormir com uma idéia na cabeça, a de que hoje tinha sido seu último dia de bom moço.

Com os primeiros salários, Paulo Ferreira comprou um iPhone, o celular que ele sempre quis. Depois, parcelou uma moto para ir mais rápido do estágio pro cursinho. Era elogiado pelo chefe – o menino aprende rápido! Estava pavimentando uma lenta estrada rumo à uma carreira de sucesso, a uma vida plena, fruto de seu esforço. Ia ser efetivado! Voltou para casa, cansado, leu um pouco e foi dormir, lembrando, contente, que hoje tinha sido seu último dia como estagiário.

Mas aquela sexta-feira amanheceu cinza…

Paulo acordou. Tomou seu Sucrilhos sozinho, na sala, vendo o jornal. Colocou o celular no bolso, subiu na moto e partiu para o trabalho, animado.

João acordou. Mordeu um pedaço de pão duro, nem ligou a TV. Colocou uma faca no bolso, pôs o chinelo e partiu para a cidade, com fogo ardendo em seu coração.

Nascidos no mesmo dia, e vivendo por quase vinte anos na mesma cidade, eles nunca tinham se encontrado. Mas João e Paulo nasceram um para o outro…

Suas vidas se cruzaram onde a avenida principal cruza com a rua da favela. João descia o morro a pé e Paulo vinha pela avenida, de moto. Foi então que o semáforo fechou e ele parou, bem ali, na divisa entre os dois mundos.

No mesmo instante, em uma dessas coincidências que só Deus explica, chegou João no cruzamento. Enfurecido, magoado, queimando por dentro, apontou a faca para Paulo:

– Desce da moto, playboy! Vamos, passa o celular! Vai, mano, rápido!

– Calma, pode levar! Não me machuca! – disse Paulo, assustado.

João subiu na moto de Paulo, portando seu celular. Pela primeira vez na sua vida inteira estava por cima, tinha vencido, era o mais forte. Pela primeira vez e pela última.

A adrenalina anestesiou todo seu corpo, que não sentiu quando um policial que passava, vendo o assalto, desceu do carro e lhe deu dois tiros. Um pegou na barriga e outro no ombro. Ele caiu no chão, predado, abatido, ensaguentado…

O policial se aproximou com arma apontada, chutando a faca da mão de João:

– Seu verme! E agora, quem é o espertão? – gritou, enquanto tirava o celular roubado de seu bolso.

– Obrigado, policial! – agradeceu Paulo – Esse aí vai roubar moto no inferno agora!

Paulo pegou de volta o que era seu, satisfeito com o desfecho.

A ambulância chegou rápido, mas não a tempo de salvar João. No chão, olhando para o céu pela última vez, ouviu as palavras da pequena multidão que cercava seu corpo moribundo:

– Ladrão!

– Bem feito!

– Vagabundo.

Paulo achou justo: cada um deve ter aquilo que merece! E, de fato, ele merecia as coisas que tinha.

João não achou justo: cada um deve ter a vida que merece!

E, de fato, ele não teve a vida que merecia.

* Inspirado, mas não baseado, nesse vídeo e nos tristes comentários feitos sobre ele: http://orgulhohetero.blog.br/roubo-e-frustrado-por-pm-em-sp/. O rapaz desse video sobreviveu.

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Parabéns por beber Coca

Coca-Cola

Aconteceu ontem, quando saí com meus amigos. Todos precisamos de lazer.

Para mim, lazer sempre significou estar com pessoas que eu gosto fazendo algo divertido. No caso, fui num bar cheio de videogames – o lugar perfeito.

Para acompanhar a jogatina, pedi uma Coca, um dos meus piores hábitos. Eu e você sabemos que beber um líquido preto, ácido, cheio de açúcar e gás, não se traduz como uma alimentação saudável. Foi então que um desconhecido, visivelmente alcoolizado, ao me ver com a icônica garrafinha, me perguntou:

– Desculpe me intrometer, mas, por que você está tomando Coca? Todos os seus amigos estão bebendo!

– Bom, eu gosto de Coca. – respondi, um pouco intrigado.

– Puxa! Parabéns, cara! – disse, sorrindo, o simpático rapaz.

E essa foi a primeira vez na minha vida inteira que eu fui parabenizado por beber Coca. Podia imaginar que era uma ironia, mas a sinceridade era aparente no rosto do amigo: ele estava realmente admirado com o fato de eu beber Coca ao invés de pinga.

Aquele jovem me olhou como se eu tivesse vindo de outro mundo. Um mundo onde a decisão de se entorpecer não é influenciada por pressões sociais, por exigências de desinibição ou pela necessidade de aceitação em um grupo. Um mundo onde a juventude não é sobre estar fora do seu próprio controle. Um mundo onde não te ensinam que você é fraco e que, portanto, escapar de si mesmo é a solução.

Tomei um gole de Coca, olhei para ele com calma e perguntei:

– Por que você bebe?

A essa pergunta, existem muitas respostas prontas: bebo porque estou triste, bebo para me soltar, para ter coragem, para conseguir dançar, para esquecer os meus problemas – como se beber fosse mesmo a resposta para todas essas dificuldades. Mas, dessa vez, foi diferente.

O garoto me olhou fundo nos olhos e parou por alguns segundos, perplexo. Abriu um sorriso e disse:

– Não sei.

Tomou outro gole e virou de volta pro balcão.

Ele realmente não sabia.

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Desinteligência

Essa madrugada eu levantei e bati o dedinho do pé na quina do sofá. Mais uma vez.

Os nervos foram os primeiros a notarem o impacto. Avaliaram os danos e, nervosos, prontamente fizeram uma carta endereçada ao meu cérebro.

A mensagem subiu pela perna, por dentro do túnel na minha bacia até minha coluna. De lá, subiu de elevador até a base do crânio e foi entregue ao meu cérebro, que abriu e leu:

“Ai!

Ass: dedinho do pé direito”

Foi motivo de desespero. Apertou o botão vermelho — alerta, alerta! Instruções para gritar, para a perna se retrair evitando mais impacto. A consciência veio correndo:

– Nossa! O que aconteceu?

– Leia essa carta! — disse o cérebro, esbaforido.

Mas antes que conseguisse ler, foi interrompida pela dor. A dor é uma megera desgraçada que observa tudo. Maldita, não deixa escapar nada…

Em meio às pauladas, ela gritou com sua voz ardida no ouvido da consciência:

– Você bateu o dedinho do pé, seu vagabundo! Seu merda!

– Tá bom — Ai! — você pode — Ai! — para de me bater? — clamou, em vão.

Atordoada, minha consciência resolveu pegar o megafone e falar pela boca, para todos ouvirem:

PU-TA-QUE-O-PA-RIU! — gritou.

O corpo inteiro ouviu. E tremeu.

A polícia mandou os anticorpos avaliarem o local do acidente. Os advogados iniciaram processos inflamatórios. As mãos foram de ambulância acolher o dedo ferido. Todo mundo trabalhou direitinho para não ouvir outra bronca.

No final, tudo ficou bem, não houve fratura ou escoriações. Só que a confusão toda me fez perder o sono.

Tudo culpa da bexiga…

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A pessoa mais bonita

Quando acordei hoje, eu era a pessoa mais bonita do mundo.

Despenteado, saí sem vestir nada de especial: calça jeans, camiseta e meus tênis confortáveis com cadarços que não precisam amarrar.

Da grande barriga às covinhas nos punhos, da barba ruiva às entradas no meu cabelo, dos meus um e oitenta aos meus cento e trinta, eu era todo eu mesmo.

Um cara comum, como eu, é visto por muita gente quando sai de casa. Nunca vou saber exatamente quem, mas teve uma dessas pessoas que me viu e pensou: esse é o cara mais bonito de todo o mundo.

Por mais humilde que eu fosse, não pude contrariá-la. Nem meu tamanho desproporcional, nem meu rosto assimétrico, nem meus cabelos ralos e ressecados puderam me ajudar a não ser a pessoa mais bonita do mundo. Não pude evitar, pois toda a minha beleza estava dentro daquela pessoa, não em mim.

Porque quando você diz que alguém é belo ou feio, nunca está dizendo algo sobre a pessoa, está sempre dizendo algo sobre si mesmo. O correto não seria dizer “isso é belo”, mas sim “isso é belo em minha mente, em minha alma”.

Minha mãe comia, quando criança, a massa de macarrão que a minha vó fazia. Era uma massa caseira, uma experiência única, que ninguém mais provou. Eu, hoje, como o macarrão que vende no mercado, aquele mesmo que você compra, idêntico ao meu. Querem que todos os macarrões sejam iguais…

Querem que todas as belezas sejam iguais também. Querem que a minha mente e a sua mente e a de todo mundo concorde que isso é belo ou aquilo é feio. Querem anular a beleza dentro de você e de mim e substituir por uma beleza pré-fabricada, que se compra no mercado.

Começam criando um padrão de beleza. Depois, criando uma indústria de produtos que prometem deixar as pessoas mais próximas desse padrão. Por fim, espalham em cada canto do mundo uma imagem dizendo que aquilo é belo e dizendo que o contrário é feio.

Já imaginou um dia inteiro sem ver uma imagem que diga pra você o que é belo e o que é feio? Duvido que você tenha tido um dia sequer desses na sua vida até hoje.

Karen Carpenter era uma jovem e talentosa baterista que cantava lindamente. Seu canto era tão bonito que, ao ouvi-lo, todas as coisas do mundo se tornavam belas. Mas isso não foi suficiente, pois o mundo de sua época dizia que a beleza da mulher era proporcional a quanto ela era magra, e isso contribuiu para que ela morresse de anorexia antes de completar 33 anos.

Estimulam a auto-estima de quem se enquadra no padrão e destroem a auto-estima daqueles que não se enquadram. O resultado é tanta gente querendo mudar o que é para ser mais bela, sendo que tudo que precisam é achar alguém disposto a ver a beleza nelas.

Querem assassinar a beleza, mas será impossível. Sua beleza é uma rosa que nasce na alma de quem te vê. Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas não podem deter a primavera – já disse Che Guevara.

A minha beleza, bem, não sei quantas rosas tem por aí pra mim. Mas hoje, quando acordei, eu era a pessoa mais bonita do mundo.

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Domingo

Domingo já foi meu Nêmesis.

Vai esvaindo a cada hora seus momentos de descanso, vai caindo o restinho de liberdade num conta-gotas, o Sol vai fazendo estúpido e determinado seu caminho de horizonte a horizonte mais uma vez. Não há como deter o domingo, dia que já nasce acabando.

Uma vez, eu, ingênuo, pensei: toda dor do domingo vêm da segunda, do medo da segunda, do não-gostar da segunda… Mas não, a dor não vem da segunda: o domingo dói sozinho. Vivêssemos nós em semanas com 7 domingos e seria o inferno.

Não há nada de particularmente bom, o domingo é um dia de despedidas, de ressaca, de anti-clímax. Nada funciona direito, o céu é mais cinza, os rostos mais tristes, as ruas mais vazias, as portas fechadas. Nada para fazer. Ninguém quer sair. Se engana se acha que é o início da semana, domingo é um dia de finais, não de começos.

Só que hoje o domingo não dói mais em mim. Não mais porque recuso a idéia de dia útil e final de semana. Eu não vejo assim, todos os dias são igualmente úteis, as semanas não acabam ou começam. A vida flui constantemente, todo dia é diferente e eu gosto de todos os dias.

Durante a semana eu converso com pessoas, conheço lugares, me divirto, me emociono. Faço isso de segunda a segunda, sem distinção.

Trabalhar, estudar, compromissos… Faz parte da vida.

Nem todo mundo tem a sorte que eu tenho de fazer o que gosta todos os dias. Mas se você não tem essa sorte, brigue por isso, não se conforme.

Ou terá que apanhar do domingo toda semana.