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O certo de Carla

Carla era pequena ainda, mas já tinha aprendido duas coisas: o certo e o errado.

Entendeu que o certo era aquilo que deveria fazer e que o errado era aquilo que deveria evitar. Não entendeu, no entanto, como descobrir se alguma coisa era certa ou errada – o que mandava toda a teoria por água abaixo.

A cada coisa que fazia, seus pais lhe diziam:

– Está certo, muito bem!

Ou:

– Está errado! Não faça isso!

E aprendeu mil coisas certas e mil coisas erradas com eles. Mas, todo dia, mil coisas novas apareciam. Carla precisava de uma fórmula, uma regra, claro! Assim, a cada nova situação, conseguiria decidir o que era o certo.

Pensou: o certo é aquilo pelo qual vem a recompensa e o errado era aquilo pelo qual vem a punição.

Logo, o dedo na tomada era imediatamente errado, como seus pais lhe diziam. Pareceu uma boa fórmula! Mas e o dedo no bolo?

Ah, o dedo no bolo! Quem nunca? Primeiro, a recompensa de mergulhar os dedos gordinhos no chantilly gelado e de saborear o doce cremoso na lambida. Delícia! Porém, inevitável, o furo será notado e o castigo virá infalível, seja uma semana sem seus brinquedos ou alguns dias sem ir ao parquinho. Houve recompensa e punição para o dedo no bolo, e Carla não soube mais dizer se era certo ou se era errado.

Pensou: o certo é aquilo pelo qual nunca vem uma punição.

Logo, o dedo no bolo era errado, como seus pais diziam. Pareceu uma boa fórmula!

Um dia, na escola, Carla viu um menino mais velho roubar o lanche de um mais novo. Bradou:

– Devolva o lanche dele!

O grandão se virou para ela e lhe deu um pontapé dolorido na canela. Saiu pulando de um pé só para seu cantinho, refletindo sobre ter sido punida por aquilo. Se a punição veio, portanto defender o garotinho foi errado.

Voltou para casa e perguntou para sua mãe o que achava disso, a qual respondeu:

– Minha filha, você fez errado! Não era problema seu, não se meta em confusão.

A regra concordou com o que sua mãe disse e deveria parecer boa. Carla não achou.

Percebeu que o tempo todo só tentou imitar o certo de seus pais. Nesse dia, pela primeira vez, Carla discordou deles e achou que defender o garoto foi certo, definitivamente certo!

E assim cresceu, convencida de que o certo não era mais nada daquilo que seus pais tinham lhe ensinado. Inaugurou seu próprio conceito de certo, o certo de Carla, só seu, indivisível de sua alma.

Não tinha mais um livro de regras, tinha um caderno em branco. Em princípio, encontrou angústia ao pensar que poderia escolher caminhos sombrios para si. Como nos primeiros passos de um detento ao ver a rua pela primeira vez depois de anos, ela teve receio, mas logo percebeu o valor de sua liberdade.

Dizia Protágoras que o ser humano é a medida de todas as coisas. O certo e o errado está dentro das nós. A dor do pontapé foi sentida por Carla, dentro de si. O pontapé foi errado? Sim, para Carla, que sentiu a dor – achou errado. Foi errado para quem a chutou? Talvez sim, seja esse sensível às dores alheias – achou errado, mas o fez assim mesmo.

Fosse Carla sozinha do universo, errado e certo seriam pouco úteis. Sem ninguém para sentir dor, chutar uma pedra não seria errado. Não teria ninguém para matar a fome com o bolo, então não seria errado furá-lo.

Por que precisava de certo e errado, então?

Pensou uma coisa bela: o certo e o errado só existem porque os outros sentem e eu me importo. O certo de Carla, portanto, era bom por princípio, não por imposição.

Carla teve uma vida longa, fez tudo que quis: comeu chocolates, viajou sem rumo, brigou com namorados, largou a faculdade, tocou violão, brincou com cachorros. Teve bons amigos, teve inimigos, amores e filhos, morreu sem realizar seus sonhos, mas realizou um monte de coisas que jamais sonhou.

Carla fez coisas que achou certas, mas achou certo fazer errado de vez em quando também.

E, no final, quem sou eu para dizer que ela estava errada?

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Me descreva em uma palavra: gordo

Me descreva em uma palavra e dirá: gordo. Todos meus outros aspectos serão irrelevantes. Quem é Diego? É aquele gordo!

Certo dia, nesse mesmo blog, dois comentários conflitantes sobre mim:

  • O que você tem de gordo você tem de burro
  • O que você tem de gordo você tem de inteligente

Sou burro? Sou inteligente? Penso que sou inteligente, alguns discordam – é um debate aberto. Só temos que tomar cuidado para não esquecermos que sou gordo. Nunca.

Hipócritas alguns dirão se preocupar com minha saúde. Não se preocupam comigo aqueles que molham suas críticas insossas no saboroso molho do preconceito. Como o estuprador que beija a vítima, como o senhor que poupa o escravo do tronco, a opressão sempre tenta se discursar de amor, mas tanto oprimido quanto opressor sabem.

Me descreva em uma palavra e dirá aquilo vê de mais importante, um resumo, um colapso da minha existência em um único ponto, como uma estrela que se demole espetacularmente sobre si mesma. A supernova de meu ser lançaria no espaço minha alma por completo, todos os meus feitos, meus ossos e cabelos, restando apenas aquilo que de mais essencial se vê em mim: um gordo é sempre resumido à sua gordura.

Uma dia, meu irmão me contou sobre a língua dos índios antigos. Dizia ele que os tupis não podiam entender a expressão “minha árvore” pois para estes era inconcebível alguém possuir uma árvore: uma pessoa possui mãos, pés, orelhas, mas não árvores. Como poderia a árvore ser minha se ela está separada do meu corpo?

Tolos somos nós que acreditamos possuir coisas que existem independente de nós simplesmente porque conseguimos controlá-las. Você irá morrer e aquele seu espremedor de laranja que você nunca usou continuará existindo inútil e ignorante de sua morte – você nunca o possuiu, você só o controlou.

Seu corpo, porém, será sempre seu e nunca de outro, sua única e intransferível propriedade. Quando tentam controlar seu corpo, acreditam possuí-lo, como um espremedor de laranja.

Gordo então sou de direito, que vim ao mundo de boca e pança e meu corpo me pertence. Por que se incomodam tanto com isso?

Talvez meu tamanho seja grande demais para caber em suas mentes diminutas.

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Louca

Minha namorada não gostava que eu esburacasse a manteiga no café da manhã. O jeito certo, para ela, era raspar sempre uma fina camada do topo, para que ficasse fácil consumir o restante e deixar uma aparência agradável. Manteiga era coisa séria! Esquecer da regra e perfurar a barrinha amarela resultava em bronca certa e cara feia.

Eu achava que ela era louca por isso. Por que implicar com a manteiga?

Por outro lado, não me achava louco quando exigia veementemente que todos os ícones da área de trabalho do computador fossem agrupados em pastas. Nunca me achava doido por me incomodar de ter refrigerante servido em caneca de porcelana. Também não me achava louco quando brigava pelas facas estarem misturadas aos garfos nas gavetas.

Certa vez, fiz questão de acompanhar uma amiga em uma exposição, quando então minha namorada disse estar com ciúmes da situação. Não havia motivo, pensei, pois eu sou uma pessoa honesta e, afinal, era apenas minha amiga. Ao retornar do evento, ela estava bastante chateada, o que durou cerca de uma semana.

Eu achava que ela era louca por isso. Por que implicar com minha amiga?

Por outro lado, não me achava louco quando não queria que ela fosse ver os amigos da faculdade sozinha. Nunca me achava doido quando ligava só para saber se ela estava mesmo onde havia dito que iria. Também não era louco quando entrava em seu perfil pessoal para encrencar com as mensagens que ela recebia no mural.

A contradição é óbvia, mas se repete todos os dias. Ao invés de entendê-las como pessoas normais em sua complexidade de sentimentos, variações humor, emoções e dilemas pessoais, nós homens nos limitamos a rotulá-las repetidamente como loucas.

Mulher com ciúme? – É louca!

Mulher irritada? – Deixe de ser louca!

Mulher com manias? – Louca!

Mulher emotiva? – Louca!

Mulher insegura? – Loucura, mulherzisse!

Foi assim que aprendemos em casa, na TV, nos filmes, nos livros e até nos videogames: que uma mulher só não é louca se confiar plenamente em nós, fizer todas as nossas vontades e aceitar todos os nossos desaforos.

Todos nós acreditamos um dia que as mulheres eram frágeis e precisavam de um homem para as proteger e cuidar. Acreditando nisso, nós as tratamos assim, como cavaleiros protegendo donzelas, só para depois descobrir que elas não estavam felizes de estarem em uma relação onde eram tratadas como inferiores e dependentes. E então, novamente, as achamos loucas.

Chamamos tanto as mulheres de loucas que muitas se convencem disso. E usamos isso contra elas. Quando dizemos que elas são loucas, estamos fazendo muito mais do que ofendê-las, nós estamos tirando sua voz: com louco não se discute.

Amadurecer foi mais do que perceber que se esburacar a manteiga a incomodava, então seria gentil da minha parte me esforçar para evitar. Foi mais do que aprender que ignorar aquilo que incomoda os outros é rude e demonstra desprezo.

Foi mais do que perceber que os ciúmes dela não eram sobre mim, sobre minha amiga ou sobre meu caráter, mas sim sobre seus próprios sentimentos e necessidades que eu não buscava compreender.

Amadurecer foi mais do que perceber que as mulheres não são frágeis e não precisam que eu as proteja.

O amadurecimento foi perceber que ela nunca foi louca.

Quem estava louco era eu.

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O que aprendi na escola pública

Era uma manhã chuvosa de quarta feira quando cheguei na escola para fazer a prova de literatura. Já na sala, respondendo as perguntas, meu colega sussurrou:

– Psiu! Quem é Capitu?

– Caramba, você não leu o livro? – sussurrei de volta.

– Cara… eu mal consigo ler a prova.

Estávamos no primeiro colegial.

Em outra manhã, havia chegado para cumprir uma grade de 5 aulas: uma de educação física, duas de matemática e duas de química.

Entrei na aula de educação física e fui jogar bola, quando logo fiquei sabendo que a professora de matemática tinha faltado. Como a escola também não tinha mesmo nenhum professor de química, ao fim da pelada resolvi pular o muro da escola e voltar para casa.

Tomei uma advertência.

Minha professora de matemática fazia tripla jornada e era comum que ela faltasse algumas vezes no mês. Nesses dias, sobravam duas opções: ou não tinha aula nenhuma, ou tínhamos aulas com um professor substituto.

Certa vez, estava o substituto corrigindo um exercício meu. Nunca fui bom aluno, mas gostava de matemática e estava bem convencido de que o perímetro do círculo era π vezes seu diâmetro. Já o professor achava que era π vezes o quadrado do raio.

– Professor, isso é a área! – disse.

– Ah! Se você insiste, deve estar certo. Eu não sou formado em matemática.

Ele era formado em artes. Quando a professora de matemática teve um filho e tirou licença, foi ele quem nos deu aula até o final do semestre.

Todas essas histórias são verdadeiras e aconteceram comigo, entre 2002 e 2003, em uma escola pública da rede estadual de São Paulo, considerada uma das melhores da zona norte da capital.

Com tantos problemas de infra-estrutura, organização e capacitação, de que me serviram esses anos na escola?

Não aprendi geometria, nem as leis de Newton, nem inglês, nem a história das grandes guerras, nem sobre o clima da Ásia. Não aprendi a conjugar o verbo haver, nem onde pôr as malditas crases. Não aprendi a resolver equações, nem calcular a trajetória de um projétil.

Da grade curricular, aprendi realmente muito pouco.

Já se foram mais de 10 anos, e desde então venho praguejando não ter aprendido nada na escola. Foi só hoje, olhando para trás, que percebi o quanto fui tolo, que não existe experiência na vida que não lhe ensine nada.

Para mim e para qualquer um dos jovens que estudaram ao meu lado ou nas mesmas condições que eu, não existia qualquer motivação para estudar. Víamos nossos próprios mestres passarem dificuldades, aqueles que deveriam ser nosso maior exemplo de como os estudos poderiam melhorar nossas vidas.

Muitos professores tinham se formado ainda na ditadura militar e desde então não tinham tido a oportunidade de se atualizarem. Precisavam dar aula em mais de uma escola para complementar a renda e viviam a galopante desvalorização de seus salários congelados por já uma década.

Não havia alegria na escola. Todo mundo estava cansado e frustrado. Só depois de adulto entendi que é impossível ser feliz quando seu trabalho não resulta em nada. Um professor jamais será feliz se a estrutura e o sistema em torno dele fizer seus alunos desistirem de aprender.

A monitora que cuidava de nós nos intervalos e infindáveis aulas vagas era uma senhora de 80 anos que, por Deus, deveria estar curtindo sua merecida aposentadoria, mas por motivos financeiros era obrigada a cuidar de uma multidão de crianças e adolescentes que não queriam estar lá.

O prédio era feito um presídio: cinza, sem acabamento, com grandes portões de metal, grades nas janelas e arames farpados sobre os muros. E é exatamente assim que nos sentíamos, como presidiários de regime semi-aberto, deixando a escola todo dia lamentando termos que voltar no seguinte. Não por acaso, por diversas vezes os alunos planejaram fugas e arrombamentos dos portões da escola.

Entediados, sem aulas, sem lazer, maltratados e presos. Esse é o ambiente no qual se espera que um jovem desenvolva seu potencial?

No Brasil, se tiver dinheiro, você pode pagar para seu filho estudar em uma escola que não tem nenhum desses problemas. Conheço gente que, ainda no ensino médio, tinha aulas de piano. Que tinha professores doutores. Colégios com piscina olímpica, quadras de piso emborrachado e bosques. Tinham plantonistas de dúvidas depois do horário. Tomavam aulas de computação. Ganhavam até fitas VHS com filmes que tratavam dos temas estudados em sala de aula.

Minha família não tinha dinheiro nem para comprar um videocassete.

Posso não ter aprendido matemática ou química, mas aprendi que na vida nem todos tem as mesmas oportunidades ou mesmo oportunidades parecidas. Que inclusive alguns não tem nenhuma oportunidade.

Quem estudou comigo foram os filhos dos trabalhadores que moravam nas favelas e os filhos da classe média, como eu, que tinham sido vítimas da irresponsabilidade econômica neoliberal que se praticou no Brasil na segunda metade da década de noventa. Esses foram meus amigos e, na verdade, esses eram todas as pessoas que eu conhecia.

A primeira vez que nossas vidas cruzaram com as dos jovens da elite foi no vestibular. Chegamos desarmados para brigar com outros que estavam há anos se armando para nos enfrentar. Éramos amadores, como um time de várzea desafiando o campeão da série A – estávamos certos da derrota.

O vestibular é a barreira definitiva da segregação social. Nele não é testado sua capacidade de cursar a faculdade, mas sim a sua origem. Aqueles que tiveram que contar com o ensino público não tem chance, pois os testes irão cobrar uma miríade de conhecimentos que são ensinados apenas nas escolas particulares.

Sim, por fim eu passei no vestibular, com esforço. Alguns irão se apressar em argumentar que sou um exemplo de que as oportunidades são dadas, e justificar assim jogar nas costas do indivíduo a responsabilidade por ele não ter conseguido um lugar ao sol nas trevas dos nossos abismos sociais – o que é uma imaturidade. Sempre é imaturo julgar os indivíduos.

Tenho o pé no chão e vivência para entender que meu feito foi consequência de muitas condições favoráveis, em grande parte por conta de meus pais terem tido sucesso em incentivar e prover recursos para que desenvolvêssemos nossa intelectualidade. O envolvimento de ambos meus pais com a militância política tiveram grande participação na minha capacidade de compreender coisas e, em consequência, me tornar autodidata – o que me capacitou para brigar por minha vaga na universidade.

Ainda assim, tive que pagar um curso pré-vestibular com meu primeiro emprego para preencher as lacunas do ensino público que me reprovaram em 2005 em minha primeira tentativa. Com muita sorte e muita ajuda, consegui entrar na USP em 2006.

Lembro-me bem que a escola pública foi o último lugar na minha vida que frequentei onde a proporção de negros presentes era coerente com a proporção de negros da cidade. De lá para cá, superada a barreira da segregação do vestibular, fui passando a freqüentar espaços elitizados, como a própria universidade, as empresas de engenharia e os eventos de tecnologia. Cheguei até a ter um programa de televisão. Todos esses espaços são dominados por homens brancos. Não consigo deixar de pensar que se eu fosse negro ou mulher, talvez isso fosse suficiente para que eu não tivesse as condições favoráveis que tive para ocupar esses espaços.

O que aprendi na escola pública? Aprendi sobre injustiça e desigualdade. Sobre o mundo real, sobre a vida ser dura. Sobre preconceito, racismo, machismo e sobre barreiras intransponíveis. Aprendi a ter a humildade de saber que se hoje tenho uma vida melhor é porque tive mais sorte do que mérito. Sorte daqueles que tem, pois os que não tem não tiveram escolha.

Aprendi que todos mereciam uma chance de brilhar, mas que nem todos terão.

Essas coisas que tomo como óbvias e me formam como pessoa e como cidadão, não posso assumir que sejam óbvias para todos. Nenhum texto nem nenhuma imagem consegue substituir a experiência.

O que aprendi na escola pública não ensinam nas melhores escolas particulares e, diferente das fórmulas de matemática, são coisas que levo para a vida toda.

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Desobedientes

Antes mesmo de eu nascer, já tinham escrito para mim diversas regras sobre como eu deveria viver.

Já tinha gente preparada para me punir se não cumprisse essas regras. Tinham lugares especializados onde passaria minha infância aprendendo, dentre outras coisas, a obedecer essas regras.

Funcionou: hoje, adulto, resumo-me a cumpri-las.

O que me tornaria obediente seria, em parte, saber que seria punido se não obedecesse. Mas, confesso, a perspectiva de punição nem passa pela minha cabeça, pois confio que minha obediência seja tão eficiente que eu naturalmente jamais escolha desobedecer. Confio que sou tão formidavelmente obediente a ponto de cumprir leis que em grande parte nem mesmo conheço.

Eu sou um homem branco de classe média que mora na metrópole. Do meu ponto de vista isoladamente, talvez seja desejável manter a ordem. A ordem me protegeu e me mimou. Me deu uma vida confortável e tranquila: trabalho com o que gosto, tenho lazer e como do melhor. Não teria absolutamente nenhum motivo para desafiar a ordem, seria apenas estúpido do ponto de vista pessoal.

Agora, todos sabemos que, na verdade, as coisas estão simplesmente uma merda. Que tá transbordando de gente trabalhando sem folga por trocados, comendo restos de lixo e bebendo água contaminada. Essa é a realidade, e nós a ignoramos diariamente para não morrer de desgosto e continuar vivendo na nossa bolha sem nos comover.

Que motivos essas pessoas que comem restos tem para querer manter a ordem? Que senso de obediência esse povo terá à leis que não os protegem de toda essa desgraça que vivem? Por que cargas d’água alguém obedeceria leis que te deixam na merda enquanto mandam aqueles que te exploram para ilhas paradisíacas tomar água de coco?

Falhamos em lhes dar motivos para obedecer e falhamos em doutrina-los a obedecer. Também falhamos em os amedrontá-los e coagi-los a obedecer. Malditos desobedientes, roubaram meu iPhone! Por que não vivem suas vidas de merda quietos?

Criamos jaulas para guardar gente desse tipo, que desobedece. Ou melhor, gente que desobedece e não tem bons advogados.

Aplaudimos aqueles que, mesmo em face à sua própria tragédia, conseguem obedecer: “Pedrinho estava fodido na vida, mas não desobedeceu as regras, continuou se fodendo e agora está um pouco menos fodido – deu a volta por cima! Isso, claro, depois de trabalhar duro por anos para sustentar playboys que dão festas com prostitutas na piscina de suas mansões”. Palmas para Pedrinho, vai passar no Fantástico, prodígio, exemplo, obediente.

Vai passar no Fantástico, também: no Maranhão os presos estão se rebelando e se matando. Estão arrancando as cabeças uns dos outros. O Brasil está em choque: como eles são bestiais e bárbaros, ainda bem que estão presos – ufa! Não importa se eles estão vivendo amontoados em condições que você denuncia no Facebook quando envolvem cães. Talvez importe um pouco, mas não a ponto de se fazer nada a respeito. Tampouco a ponto de traçar uma conexão entre o tratamento que recebem e seu comportamento.

Todo dia, Datena mostra um bandido que violentamente agrediu ou matou um pai de família da minha cidade. Todo santo dia, não pula um. Ele quer te convencer que bandido é de uma espécie diferente, de genes ruins, raça maldita, que a polícia está trabalhando para exterminar. Em quase duas horas de programa – quanta audiência dá isso, meu deus? – nenhuma mínima reflexão sobre a origem de toda essa violência. Nenhuma reflexão sobre como melhorar as coisas para que as pessoas não se tornem violentas, para que elas achem que lhes é de interesse obedecer a ordem.

Ninguém realmente se preocupa com o por que de tudo isso. Faz parte da doutrina, a mesma que dita as regras, evitar pensar no porquê e instaurar o medo. O resultado é que mesmo os mais privilegiados ainda pensam mais nos seus próprios problemas do que em qualquer outra coisa: ficam com medo de perderem o que tem, de terem dificuldades e de passarem por aquilo que a maioria está passando…

É uma reação animal, pois somos todos animais, exatamente iguais àqueles que enjaulamos.

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O último dia

Esse será o último dia da minha vida.

Lembro de correr o dia todo no clube sem me cansar, de pular de pedra em pedra sem pisar na grama e de tentar levantar sem sucesso os halteres da academia.

Agora já não posso mais correr, meus joelhos não me deixam pular, e levantar mil vezes os halteres não é suficiente para me fazer emagrecer.

Lembro do meu primeiro dia na escola nova, aquela gente que não me conhecia e com quem estava louco para conversar, de comprar fichas coloridas na cantina e de não saber o que era uma fogazza.

Agora já não vou mais a escola, já larguei minha faculdade, todo mundo me conhece, passo tudo no cartão e me enjoei de fogazza.

Lembro de passar o dia na casa dos meu primo ouvindo Oasis, de arranhar violão e invejar seu teclado Cassio, de ficar balançando na rede do quintal discutindo o quanto impressionante seria a próxima geração de videogames.

Agora o Oasis acabou, meu violão pega poeira, meu teclado está debaixo da cama, meu primo mora em apartamento e a próxima geração de videogames não me impressionou nada.

Uma vez, me perguntaram: onde você se imagina daqui dez anos? Não soube responder.

Minhas memórias são registros do passado. São apenas registros, e não realidades, não são o passado, muito menos o presente.

Vivemos sucessivas pequenas vidas que nosso cérebro insiste em manter registro para nos dar a ilusão de continuidade. Você não acordará amanhã o mesmo que hoje, mas sua mente lhe convencerá que sim. Você não pode garantir que cumprirá as suas promessas, pois não será mais você. Você não realizará seus sonhos, pois não serão mais os seus.

Tantas vidas essas que não tenho mais e tantas pessoas essas que não sou mais. A cada ano que passa, a cada dia, é o último de nossas vidas. Amanhã, semana que vem, é outra vida, outro Diego, outro mundo.

Onde eu me imagino daqui dez anos? Não serei mais eu.

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Querido Papai Noel

Papai Noel, como você mantém sua barba tão sedosa? Sempre vejo nos comerciais, parece perolada e graciosamente encaracolada. Já sei o que quero: me traga um desses seus xampus de barba!

Puxa, acho que não vai conseguir entregar meu presente: está gordo demais para passar pela chaminé! E eu nem tenho chaminé, pois não tenho lareira e está um calor de matar. Também não tem neve, não tem pinheiro e não tem urso polar.

Vi que trouxe mais Coca-Cola para a cidade no seu caminhãozinho, mas prefiro evitar. Você deveria também, sua saúde está ficando comprometida com tanta Coca-Cola e essa pança de tanto comer pernil. Muita gordura visceral, sobrecarrega os joelhos.

Aliás, bem lembrado: me traga mais joelhos. Os dois que tenho não me sustentam mais, ainda mais depois dessa ceia de natal com Chester. Sabia que Chester é apenas um frango bombado da Perdigão, criado com hormônios que te deixam tetudo?

Quero um daqueles Playstation 4, com certeza. A Sony disse que custa 4 mil para valorizar, mas tá 2 e uns quebrados em qualquer canto, acho que cabe no décimo-terceiro!

Não sabia? Por aqui a gente tem um salário a mais no final do ano para gastar tudo com presentes e ainda se endividar mais. É bom para fazer a economia ‘girar’, dizem. Só esquecem de avisar que ela gira com juros compostos de 15% ao mês.

Ah, Papai Noel, estou tomando seu tempo, você deve estar muito ocupado! Quantos Playmobils, Pogobols e Comandos em Ação você ainda precisa entregar? Nenhum? Estou ficando mesmo velho…

Esqueça, não quero mais presentes! Ao invés disso, vou te pedir um favor: pare de ser garoto propaganda de toda porcaria que se vende por aí. Pare de nos dizer para gastar o dinheiro que não temos com cacarecos montados por escravos na China. E pare de nos fazer comer e beber coisas que dão câncer. Ponha a mão na consciência!

Depois de tantos anos monopolizando esse business, faça como Bill Gates: se aposente e vá fazer caridade.

Feliz Natal! Ho ho ho!

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Mais um post daquele gordo

Tinha acabado de fazer minhas compras e estava indo até o caixa para deixar até as minhas calças e sair devendo. No caminho, fui afunilado como gado para um estreito corredor. De um lado, uma miríade de balas, Doritos, Fandangos, latinhas de Coca-Cola e Milkbars disfarçados de Lolo. Do outro, revistas com mulheres magras nuas, com mulheres magras dando dicas para emagrecer, com mulheres magras ricas e, é claro, com mulheres magras famosas.

Nesse cabo-de-força, puxa para um lado, puxa para o outro, você pode comprar a revista ou o chocolate, mas sempre sairá perdendo. Você pode até comprar os dois: se entupir de chocolate e depois fazer regime – quem nunca? Ainda assim, quem ganha é a Nestlé, a Abril e o Carrefour, nunca você.

Parece um consenso que a pior coisa que você pode dizer para uma mulher é que ela está gorda. Eu já acho que a pior coisa que você pode dizer para uma mulher é que a pior coisa que ela pode ouvir é que está gorda.

Eu sou gordo, sei lá, desde meus 12 anos. Nem preciso dizer pra vocês, pois é óbvio, que ser gordo foi motivo de bullying, de preconceito, de repetidos ataques à minha auto-estima e de completa rejeição afetiva na minha adolescência.

Ser obeso pode ser um problema de saúde, como tantos outros que você pode ter – motivo de preocupação, mas nunca de vergonha. Se for apenas um problema de saúde, talvez você não queira trocar o açúcar que engorda pelo adoçante que dá câncer. Mas é muito mais do que isso…

Gordos são sujos e fedem, gordos são atrapalhados e desleixados, gordos são bobos, gordos são irresponsáveis, inaptos, incapazes, não são dignos de confiança e roubam o lanche dos outros! Está namorando uma mulher gorda – não achou nada melhor? Está namorando um cara gordo – deve ser rico! Gordos são indignos de amor e é vergonhoso amar um deles: só pode ser muito mal gosto, segundas intenções ou falta de opções!

Se tivesse ganhado um real cada vez que ouvi uma porcaria dessas na vida, eu seria o Rei do Camarote! Tudo isso é falado sem cerimônia, todos os dias, em todas os lugares: na mídia, no almoço do trabalho, nas salas de aula e dentro da sua casa.

Depois, justificam que gordos não se amam. Mas é claro, pois foi isso que foi ensinado: não amarás obesos – nem a si mesmo! O preconceito se retro-alimenta, como o pobre que é dito menos capaz depois de ter sido negado a ele acesso ao ensino que o qualificaria, como a mulher que é dita fraca depois de ter sido criada como uma princesa do sapatinho de cristal.

No fim, todos os preconceitos são parecidos – mulheres, negros, pobres e gays irão se identificar. O preconceito é cruel e faz muito mais mal pra saúde do que os quilos a mais.

Pior do que morrer jovem por doenças relacionadas à obesidade, é sofrer a vida inteira com o preconceito das pessoas que te cercam.

Ainda não existe regime que cure o preconceito dos outros.

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Não posso morrer

Só tenho vinte e sete anos, não é idade de se morrer. Não, quero mais muitos anos. Vou fazer tanta falta para alguém. Vou deixar tanta coisa por fazer. Vinte e sete é muito cedo: não posso morrer.

Um puxão no gatilho e já era. Um tropeção na bordinha. Atropelado na estrada, engasgado com osso de galinha, esfaqueado, acidentado, doente, traído… Tantas formas de morrer que me admiro ainda estar vivo.

Pensando bem, não sei meu prazo. Não me sinto pronto. Será que um dia me sentirei? Quem precisa estar pronto para morrer? Morrer é tão fácil – todos vamos morrer.

Aos dez na escola, aos vinte na faculdade, aos trinta no trabalho, aos quarenta casado, aos cinquenta com filhos, aos sessenta aposentado, aos setenta avô, aos oitenta descansando. Com noventa, lamentamos quem se for. Aos cem já é hora extra! Mais do que isso dá no jornal. Todas essas coisas da vida estão na história dos outros, não na minha. Não ainda. Todas as minhas aspirações, os sonhos, os planos, todos são cópias de vidas já vividas.

Não posso morrer.

E se eu morrer?

A morte será o fim de todas as coisas para mim: dos amigos e inimigos, dos doces e refrigerantes, dos videogames, dos amores, dos cometas, das frustrações, das preocupações, das batatas, das alegrias, das guerras e dos dinossauros.

Ela vai me tirar tudo, vai mudar tudo para nada. Eu não posso, não quero morrer!

Sem a morte, resta a eternidade. Viver para sempre, poder sempre contar com o amanhã. E com o depois de amanhã. E com o depois de depois de amanhã. E saber que não importa quanto tempo passe, eu ainda mal comecei.

Com tempo ilimitado, posso fazer tudo. Posso conhecer todos os lugares, ler todos os livros, ver todos os filmes, jogar todos os jogos, praticar todos os esportes, pedir todos os sabores de pizza. Serei sábio, habilidoso, experiente.

Nenhum desafio me intimidará se não tiver a morte para encerrar minhas tentativas. As escolhas não serão tão importantes, eu vou ter tempo para viver todas as experiências.

Mas se as escolhas não são importantes, também não há satisfação em tomar a correta. Não há frustração em tomar a errada. Não haverão consequências que não possam ser revertidas. Em algum momento, nada será inédito, nada vai surpreender. Nada vai me desafiar, nada vai me entreter, nada vai me doer e nada vai me aliviar.

A vida dividida em um tempo infinito tende a zero. É simples como na matemática.

A eternidade é o único castigo do qual não poderíamos escapar – só pensar nela já faz eu querer me matar.

Morte, conto com você.

Fórmula da vida

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Custo de oportunidade

Foi em uma quarta-feira de uma semana bem corrida para mim. Estava almoçando com colegas de trabalho, em um desses self-services por quilo em que você paga pela batata o mesmo preço do bacalhau.

Almoçar com colegas de trabalho é um dos rituais sociais mais sagrados da vida adulta, evolução do recreio da escola e do bandejão da faculdade. É quando a moça do R.H. vira a Karla e o rapaz da T.I. vira o Maicom. É com essas pessoas que você passa a maior parte do seu tempo, é verdade, mas só no almoço você as vê como gente e não como funções.

E como gente, conversamos sobre assuntos de gente. Assuntos de gente jovem, como somos, mas de gente adulta, como também somos. Falávamos sobre como era caro, e talvez fútil, dar uma festa de casamento. Falávamos sobre Star Wars, que acho legal, mas nem tanto assim. Era um almoço comum, a comida estava boa, tinha pego bastante legumes para emagrecer.

Se me dissessem que nesse dia eu ouviria a coisa mais estúpida da minha vida, teria ficado cético. Estava eu então cercado de pessoas que julgo cultas e inteligentes, pessoas da minha mais alta estima.

Já tinha dado uma ou duas garfadas na salada de palmito, um ou dois goles no meu suco, quando ele sentou na minha frente. O último lugar vago da mesa, resultado de nosso número ímpar, havia sido preenchido. O rapaz, que tinha visto poucas vezes, mal sabia o nome, era amigo de faculdade de alguns de meus colegas, estudantes da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP.

Ah, a USP, a universidade que abandonei, mas que nunca vou abandonar. Não concluí meu curso, mas mantenho profundos laços com pessoas que lá estudam, estou sempre cercado por elas. Também jamais vou abandonar a luta para que ela se torne uma universidade melhor, mais livre e, principalmente, mais acessível.

Curioso com a situação da recente greve de alunos, perguntei ao mais novo integrante da nossa turma de almoço:

– Você é da USP, né? Está participando da greve?

Ele riu! Achou graça e olhou para sua colega buscando a compreensão que não obteve de mim, ao passo que fiquei absolutamente perplexo com sua reação. Então, sorrindo, ele disse:

– Nós da FEA não entramos em greve! O nosso custo de oportunidade é muito alto!

Confuso com o que tinha ouvido, retorci meu rosto involuntariamente, e perguntei, esperançoso:

– Mas o que é custo de oportunidade?

Fui recebido com um sorriso soberbo, que precedeu a explicação:

– Custo de oportunidade é o preço que você paga ao não aproveitar uma oportunidade. Por exemplo, se você escolhe dormir ao invés de trabalhar, seu sono custa o dinheiro que ganharia se estivesse trabalhando.

Simples e clara explicação de um simples e útil conceito de economia. Comprovou que, sim, ele havia acabado de dizer as palavras mais estúpidas que meus ouvidos já tiveram o desprazer de ouvir. Sua frase, sua entonação e seu sorriso concentraram toda a ignorância do mundo – perigosa ignorância.

Tudo começou pela risada, reação de associar uma pessoa como ele, estudante de uma grande faculdade de economia, futuro bem sucedido economista, à atividades tão proletárias quanto “entrar em greve”. Soou absurdo para ele que eu ao menos cogitasse que ele participaria do movimento estudantil.

A risada mostrou preconceito e ignorância, mas não mais que suas palavras. Começa com “nós da FEA não entramos em greve”, querendo supor que todos os alunos, professores e funcionários daquele enorme e belo prédio de sua faculdade concordavam com ele no fato que não deveriam nunca entrar em nenhuma greve, independente da razão. Supõe que essa é uma da FEA enquanto unidade, e todos, portanto, deveriam seguir e concordar, como membros de um partido.

Com “nosso custo de oportunidade é muito alto para entrarmos em greve” ele conseguiu condensar a maior quantidade possível de pretensão e ignorância por palavra. Foi uma frase densamente pretensiosa e ignorante. Admiraria a construção dessa frase como uma obra de arte se seu objetivo fosse a ironia, mas fiquei profundamente assustado ao notar que seu autor a tinha levado a sério.

Pretensão que começa ao achar que ele próprio possuí um custo de oportunidade mais elevado que os demais, que seu tempo vale muito, o que supostamente o impediria de entrar em greve. Se estende a pretensão que ao insinuar que economia é uma ciência mais valiosa que as demais, provedora de oportunidades mais valiosas que não devem ser desperdiçadas.

Ignorância que começa ao achar que entrar em greve não tem valor. Como se lutar por uma universidade pública e livre trouxesse muito pouco benefício, portanto ele não perderia uma aula de economia para esse fim. Mostra egoísmo, pois ele que já conquistou seu lugar ao sol, já estuda lá e já tem uma carreira, não se sente motivado a lutar por mais justiça – não vale a pena o custo.

Penso que gente assim acaba ocupando papéis de destaque no nosso mundo e que, por isso, o mundo é pior. Gente que acha que seu próprio tempo é muito valioso para se perder melhorando o mundo, que acha que o melhor que pode fazer é alcançar o máximo de seu fantasioso sucesso pessoal.

Penso que é irônico que gente continuará frequentando universidades públicas que só existem por causa da luta desses que menosprezam. É muita ignorância…

Essa perigosa ignorância está sendo ensinada como doutrina aos nosso jovens. O próprio rapaz assumiu:

– Na FEA somos doutrinados a pensar assim.

– E você deixou te doutrinarem? – perguntei, surpreso.

– Sim, deixei.

Ele deixou.

Não deixe você também.